Economia circular: servitizando produtos.

Aline Faria
Bridge Ecosystem
Published in
5 min readAug 25, 2021

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Em posts anteriores do Bridge, discutimos a transição para modelos de criação de valor a partir de ecossistemas circulares, além de algumas evidências da etapa de desenvolvimento na qual a economia circular se encontra. Na primeira discussão mencionada, trouxemos o framework clássico desenvolvido pela Ellen MacArthur Foundation e pela McKinsey com ações direcionadas à adaptação de modelos de negócios para a economia circular. Entretanto, esse framework apresenta um grande foco em produtos complexos e de vida média. Isso é, um nível de especificidade que abrange um número limitado do que diferentes firmas oferecem aos consumidores.

Entretanto é importante expandirmos a discussão da aplicação da economia circular para além da venda de produtos. O clássico modelo buy-and-own (comprar e possuir), na sua essência, pouco contribui para a noção circular. Como alternativa nesse sentido, temos o sistema produto-serviço (da sigla PSS, product-service system), também conhecido como product as a service, ou servitização no Brasil. Esse modelo tem como premissa o oferecimento da função do produto, ao invés do produto em si. Dessa forma, os consumidores podem se beneficiar das funções dos produtos sem a necessidade de sua posse.

Fonte: Shutterstock

Ao tornar a principal fonte de renda um serviço, as firmas podem criar um negócio com fluxo de caixa mais estável e previsível. Ao invés de vender o produto, as empresas podem, por exemplo, alugá-lo em um pacote de serviços. Assim, além do produto em si, os consumidores podem pagar valores mensais pela sua manutenção e outros serviços necessários relativos ao produto.

Essa mudança no paradigma da relação entre consumidor e empresa traz uma série de benefícios para os dois lados. Com a firma tendo a responsabilidade em manter o produto com a capacidade de oferecer a sua função, os clientes podem aproveitar os benefícios do produto sem maiores transtornos. Além disso, esse modelo de negócio não demanda que o consumidor despenda relativamente grande quantidade de dinheiro para aquisição, no caso de produtos originalmente mais custosos. A relação de fornecimento constante de serviço faz com que os consumidores aumentem o tempo de relacionamento com as empresas, permitindo-as conhecer melhor os seus clientes e suas necessidades. Outro benefício dessa relação de longo prazo é a possibilidade de as empresas analisarem os produtos retornados pelos clientes para entender como podem preparar novas versões melhores (por exemplo, formas para que sejam mais duráveis, atualizáveis ou fáceis de fazer a manutenção). E, claro, os produtos não aproveitados podem ser reciclados e usados como matéria-prima.

Apesar do framework desenvolvido pela Ellen MacArthur Foundation e pela McKinsey não tratar em si do tema de servitização, outras partes daquele texto abordam o tema. Em uma delas, os autores fazem uma análise das funções de máquinas de lavar, de tecnologia superior, sendo vendidas em forma de serviço. Uma das conclusões do estudo é que esse modelo de negócio permitiria que a maioria das famílias tivesse acesso a máquinas de qualidade superior. No aspecto ambiental, a servitização dessas máquinas de lavar faria com que fossem usados menos recursos materiais e se emitisse menos carbono na atmosfera. Para ilustrar em números, considerando um período de 20 anos, a substituição da compra de cinco máquinas de baixa qualidade por apenas uma de alta qualidade — empregada por meio da servitização — economizaria quase 180 kg de aço e mais de 2,5 toneladas métricas de CO2e.

Fonte: Pixabay

O modelo de servitização, portanto, é capaz de trazer uma série de benefícios econômicos, ambientais e sociais em conjunto. Para melhor ilustrar, vamos utilizar o estudo de Sakao et al. (2019) que agrega esses aspectos em uma análise ao mesmo caso das máquinas de lavar mencionado acima. Em seu trabalho, os autores mostram que a servitização das máquinas de lavar de alta qualidade permitiria famílias de baixa renda reduzirem os seus custos com energia por meio do acesso a uma máquina mais eficiente. Já o menor consumo energético, por sua vez, acarretaria menores emissões de gases de efeito estufa.

Ainda do ponto de vista social, pelo fato do modelo de servitização demandar atenção extra para a remanufatura e reparo, poder-se-ia esperar alguma geração de empregos para atender a essa questão. Voltando ao aspecto ambiental, temos mais vantagens derivadas do melhor desempenho energético e maior emprego desse tipo de máquinas de lavar. Por serem capazes de gastar menos energia e água, esses utensílios tendem a durar mais anos e, portanto, temos uma quantidade menor de máquinas (e seus materiais/componentes) sendo descartada no longo prazo.

Por fim, aqui os aspectos econômicos e ambientais também se interrelacionam. Essa lógica de negócio em que a propriedade da máquina é do produtor faz com que ele tenha maior incentivo financeiro para pensar no pós-uso do equipamento. Na lógica da servitização, a reutilização ou remanufatura das partes (componentes) das máquinas é um ponto importante a ser estimulado e funcionar a favor do negócio. Também se torna economicamente interessante para o fabricante buscar projetos de máquinas que consigam atingir vida útil prolongada. Já do lado do cliente, o caso da servitização das máquinas de lavar de alto desempenho também traz a facilidade financeira de não precisar assumir o (alto) custo de compra inicial. Assim, o custo de acesso ao produto tende a cair, ao mesmo tempo em que a sua qualidade tende a aumentar.

Dado o exposto, buscamos reforçar o olhar para a economia circular para além dos aspectos relacionados somente a materiais, pensando também no conjunto de benefícios sociais, ambientais e econômicos derivados da servitização.

Referências

Foundation, E. M. (2015). Delivering the circular economy: A toolkit for policymakers. Ellen MacArthur Foundation.

SAKAO, Tomohiko; WASSERBAUR, Raphael; MATHIEUX, Fabrice. A methodological approach for manufacturers to enhance value-in-use of service-based offerings considering three dimensions of sustainability. CIRP annals, v. 68, n. 1, p. 33–36, 2019.

In a circular economy, product-as-a-service has social and environmental benefits | Greenbiz

O que é Product-Service System e como funciona? (mjvinnovation.com)

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